Como as Serpentes se Tornaram Venenosas e Outras Não - (lenda)

07-09-2010 12:38

No tempo em que a terra era ainda jovem e que todas as coisas eram diferentes, não existia a noite. O sol brilhava continuamente no céu e as pessoas e os outros animais não podiam dormir. Se por acaso fechavam os olhos, logo de seguida a luz e o calor do sol acordavam-nos. Só as serpentes viviam bem e estavam sempre frescas e bem dispostas, pela simples razão de que eram elas que detinham a noite e as trevas. Mas, um dia, quando os Índios perceberam que as serpentes guardavam a noite e as trevas, enviaram o seu chefe supremo ao chefe supremo das serpentes para lhe pedir que lhes desse pelo menos um pouco de noite e de trevas.
O grande chefe dos Índios embrenhou-se no coração da floresta, lá, onde o grande chefe das serpentes tinha a sua residência. Este acolheu-o muito pouco amavelmente:
- Quem ousa perturbar o meu sossego?

- Eu sou o chefe de todos os Índios, respondeu o visitante, e venho pedir-te um pouco de noite e trevas. Em troca, ofereço-te o nosso melhor arco e flechas.

Mas o chefe das serpentes não tinha nada para fazer com um arco e flechas.

- Para que me servem se não tenho mãos? Dá-me outra coisa!

Assim o grande chefe dos Índios voltou para casa sem nada ter obtido.

Convocou o Grande Conselho, contou o que se tinha passado e decidiram então oferecer ao grande chefe das serpentes uma matraca. Um grande chefe tem sempre necessidade duma matraca para presidir às danças rituais.

Então, o chefe dos Índios embrenhou-se, pela segunda vez, no coração da floresta.

O chefe das serpentes esperava a sua visita e quando viu a matraca abanou a cabeça dizendo:

- É uma bela matraca mas que poderei fazer com ela se não tenho mãos?

- Se quiseres, propôs o chefe dos Índios, posso amarrá-la à tua cauda.

E assim o fez. O grande chefe das serpentes agitou a cauda e a matraca rangeu, embora muito levemente. A grande serpente ficou muito contente e disse:

- Não é exactamente o que eu teria desejado, mas de qualquer modo posso dar-te um pouco de noite e de trevas. E deu ao chefe Índio um pequeno saco de couro.

- Obrigado, grande chefe, por este bocadinho de noite e de trevas. Mas o que queres para nos dares a noite toda e as trevas?

- A noite toda e todas as trevas valem um grande prémio, respondeu a grande serpente. Uma matraca não é suficiente. Seria preciso trazeres-me um grande jarro do veneno que usam nas vossas flechas.

O grande chefe Índio não percebia porque é que as serpentes tinham necessidade deste veneno mas não fez perguntas. Levou o pequeno saco e abriu-o quando chegou à sua aldeia. A noite e as trevas espalharam-se sobre o mundo e todos os Índios experimentaram um delicioso repouso.

Mas foi de curta duração. O saco apenas continha um pouco de noite e de trevas e, muito rapidamente a luz do sol veio acordá-los. E tudo recomeçou: o dia era longo e a noite muito curta. Mal as pessoas e os outros animais tinham experimentado uns instantes de sono, já o sol trazia um novo dia.

Então os Índios convocaram o Grande Conselho e decidiram recolher o veneno pedido pelas serpentes. Foi uma tarefa dura porque não recolhiam senão gota a gota mas conseguiram por fim encher um grande jarro.

E pela terceira vez o grande chefe dos Índios embrenhou-se no coração da floresta. A grande serpente já esperava a sua visita e disse:

- Eu sabia que voltarias. Preparei-te neste saco uma longa noite e as trevas. Isto será seguramente suficiente.

O grande chefe dos Índios entregou o jarro de veneno à grande serpente, pegou no saco e disse:

- Obrigado, grande serpente. Mas gostaria de saber para que queres este veneno.

- Porque a maior parte dos meus são pequenos e frágeis. Todo o mundo os persegue. Quando tivermos o veneno poderemos defender-nos. Vai agora mas não abras o saco antes de chegares à tua aldeia. Se o fizeres demasiado cedo, as trevas cobrirão o mundo antes que eu tenha repartido convenientemente o veneno entre todas as serpentes. E não resultaria nada de bom, nem para os teus, nem para os meus!

O grande chefe Índio prometeu não abrir o saco antes de chegar a casa e foi-se embora satisfeito, para a sua aldeia.

Mas no caminho encontrou o papagaio que se pôs a gritar aos quatro ventos:

- O grande chefe Índio voltou de casa das serpentes e traz no saco a longa noite e as trevas!

Aos gritos do papagaio, todos os animais da floresta acorreram e suplicaram ao grande chefe que abrisse logo o saco para que saíssem a longa noite e as trevas.

O grande chefe tentava chamá-los à razão:

- Esperem um momento até que eu chegue à minha aldeia. Eu prometi à grande serpente!

Mas os animais não quiseram ouvi-lo; não queriam esperar um minuto mais, tiraram-lhe o saco das mãos e abriram-no. Imediatamente o mundo não foi mais do que noite e trevas. Era justamente o momento que a serpente tinha escolhido para distribuir o veneno pelos seus. Mas na noite profunda, não via o que fazia, as serpentes empurravam-se umas às outras, entornaram o jarro e o veneno espalhou-se. Se bem que certas serpentes tenham recebido uma grande quantidade de veneno, outras apenas receberam um pouco e outras ainda não receberam veneno nenhum.

Desde então, há serpentes venenosas e outras que o não são. Mas toda a gente pode estar de sobreaviso, se conhecer a história e estiver com atenção, porque todas têm uma matraca na cauda.


 
In  Les plus belles histoires d'animaux, 1986. Recolha de Alena Benešová. Ed. Gründ. Paris. (Lenda dos Índios da América do Sul. Tradução livre)

 

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