O Homem da Bola de Vidro Cortada ao Meio

06-12-2010 22:44

 

O homem da bola de vidro cortada ao meio era um homem que vivia dentro de uma bola de vidro cortada ao meio. Uma daqueles bolas de vidro cortadas ao meio que às vezes há nas lojas dos trezentos, daquelas que, quando alguém as abana, mostram neve a cair. O seu mundo era só aquele: duas casas vermelhas, muito pequenas, uma estradinha e neve a cair. Isso era tudo o que havia dentro da bola de vidro cortada ao meio, tudo o que ele conhecia. Todos os dias ele ficava parado no fim dessa estradinha a sorrir um sorriso congelado e a apanhar neve na cabeça. Era assim que ele fazia, a profissão dele. Era uma vez esse homem.
 
Um belo dia a bola de vidro cortada ao meio partiu-se. Alguém se descuidou quando ia para abaná-la, deixou-a cair ao chão e ela, pás!, partiu-se.
Quando aquilo tudo bateu no chão, o homem saltou lá de dentro com uma força doida. Deu mil piruetas e despiruetas pelo ar até que, pás!, foi aterrar no meio da avenida. Sentia-se um pouco tonto, mas estava inteiro.
 
Quando se levantou, reparou que tudo era grande, ou mais do que grande, enorme, ou mais do que enorme, gigante, sim, era essa a palavra, tudo era gigante-gigante como ele nunca tinha visto.
O céu já não acabava logo ali, no vidro arredondado a um braço de distância, não. Agora era uma coisa negra lá muito mais para cima, a infinitos-mil quilómetros.
 
Tudo era longe e gigante-gigante, casas, automóveis, pessoas. De um momento para o outro, o mundo tinha mudado. (E era como se uma palavra se quebrasse, pás!, dentro da cabeça dele.) Nas letras de cores que se acendiam na avenida, o homem leu “N-A-T-A-L”. Apesar de, até àquele dia, ter vivido dentro da bola de vidro cortada ao meio, sabia ler. Não sabia que sabia mas sabia. E o que pensou foi: “Como é estrambólico este mundo do Natal!”
 
Neste mundo não havia paredes de vidro para o proteger do frio. Fazia frio e vento. Vento ventando nas árvores velhas da avenida, um vento de vozes que ia e vinha, tanto vento que parecia que punha V´s em tudo. O homem tentou sorrir um sorriso congelado como fazia dentro da bola de vidro cortada ao meio, mas não funcionou. Continuava cheio de frio e com um bocadinho grande de tristeza.
Até que uma mão enorme apanhou-o .
Era enorme e não gigante-gigante porque era a mão de um miúdo. Primeiro o homem quase morreu de medo no escuro do bolso do miúdo, mas depois a mão enorme tirou-o de lá de dentro e dos dois tornaram-se amigos.
 
O homem brincava com o miúdo e o miúdo ensinou-o a fazer coisas diferentes de ficar parado a sorrir sorrisos congelados.
Ensinou-o, por exemplo, a dormir. (Há lá coisa melhor do que um bom sono?) E, a partir daí, o homem pequenino aprendeu a sonhar.
Fechava os olhos e via neve: neve quente caindo e caindo e caindo até sempre.
 
História de Jacinto Lucas Pires
Ilustração de Danuta Wojciechowska
Histórias de Natal
Expresso, 2004

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