Um nome para viver

14-01-2011 17:07

 
Por entre alamedas de azinheiras e pinheiros mansos vinha então eu, naquele
tempo. Vestia-me com um vestido de papoilas encarnadas e calçava grossos sapatos de
pele branca, com cardas nas solas para durarem mais. Não é muito poético, mas é
verdade. De qualquer modo eram uns belos sapatos que palmilhavam incansavelmente
as ruas esburacadas da vila, os caminhos escorregadios do monte e as pedras redondas e
lisas da ribeira. Mais tarde, ainda haviam de levar-me também às outras estradas da
vida, sempre com essas vantagens dos passos certos e bem assentes nas durezas dos
dias.
 
Quando me cansava, ou de tanto sol, ou de tantos passos, a casa lá estava de
braços abertos, caiada de cal e com uma grande barra azul e por isso se chamou mais
tarde, como na tela dum pintor, Casa da Barra Azul.
 
Junto da casa havia os malmequeres, as rosas e as abelhas, e o sorriso de minha
Mãe, claro. Era o sorriso de minha Mãe, as mãos macias de minha Mãe, a voz tranquila
e baixa de minha Mãe, que espalhavam aquela brancura de sol e cal. Na rua e hoje, na
memória.
 
Vinha eu por esse tempo, com o vestido das papoilas e os sapatos cardados
e foi um alvoroço aquele encontro. Primeiro, olhou para mim como se tivesse
visto a lua ao meio-dia. Credo! Depois, todas as tardes à mesma hora, quando os
pombos recolhiam e se acendia nos campos o cheiro da urze e alecrim
queimados. Trazia-me grandes ramos de loureiro e aloendro e deixava-os sobre o
poial de tijoleira lavada da casa de minha avó.
 
Durante um certo tempo eram o loureiro e os aloendros. Depois, quando o
Outono veio e a casa cheirava já a maçãs maduras, comecei a receber uns papéis
onde voavam pássaros e as joaninhas passeavam como pingos de sangue naquela
linguagem nova e que dava vontade de chorar e rir.
 
O que será isto? — perguntava eu.
 
E os pássaros voavam à minha volta como se eu cheirasse a Primavera e eu
andava naquele mistério à espera das horas dos papéis com sinais novos que ele
me mandava.
 
Um dia, calcei-me com os sapatos de salto muito alto que eram da minha
tia, desfiz as tranças e pus-me então a esperá-lo sentada na ponte com arquinho
romano que atravessa o rio da minha terra.
 
Como é que te chamas? — perguntei-lhe quando o vi. E ele nada. Olhava
sempre para mim como se eu fosse uma estrela cadente, um girassol a andar, um
pássaro sem asas. E à volta dele sempre aquele cheiro a trigo maduro, a hortelã, a
urze. Nas mãos, olhem para este homem, se já se viu uma coisa assim, tantas
tantas pombas que em vez de dedos só têm penas.
 
Então, sempre em silêncio, viemos pela estrada fora calados, calados.
A certa altura já me doíam os pés daqueles disfarces de senhora e tirei os
sapatos. Depois, os cabelos soltos faziam-me calor e tornei a tecer as tranças. Ele
a olhar, como se a lua...
 
— Como te chamas? — tornei eu.
— Queres mesmo saber?
— Olha! Olha! Afinal já fala.
 
E comecei a rir. Mas não lhe respondi, porque já não me interessava o nome
dele. Em vez disso:
— Anda correr.
— Para onde? Estás descalça e esta gente fica toda a olhar.
— Qual gente? Aqui só há sobreiros, eucaliptos e loureiros. Encheste a rua
toda de loureiros, aloendros e pombas e agora é que tens medo das pessoas?
Quais pessoas? Não vês que estamos sozinhos no mundo? Afinal sempre quero
saber; qual é o teu nome?
— Pedro.
— Então eu sou Inês. E daqui a pouco vou morrer.
— Não podes morrer.
— Porquê?
— Porque depois já não tinha a quem oferecer ramos de loureiro, já não
tinha ninguém a quem escrever cartas.
— Mas a Inês morre sempre; é da história. Se não morresse não era Inês.
Era Ana. Era Magda. Era Margarida. Era Maria-do-outro-lado-do-mar. Mas se é
Inês, morre.
— E as cartas, a quem as escrevo?
— Não escrevas. Faz um livro com elas e chama-lhe: As cartas que Pedro
não escreveu.
 
Vê-se um relâmpago. Que susto! É um sinal do céu. E riram-se os dois.
 
Riram-se muito enquanto as rosas murchavam e as pombas fugiam.
 
Há um tempo único para sinais e risos.

Maria Rosa Colaço
Não quero ser grande
Lisboa, Ed. Escritor, 1996

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